Os desafios da indústria caipira

Sr.Sambi

Se quisermos aproveitar ao menos as sobras do processo de redesenho das cadeias mundiais de suprimentos, não devemos demorar a agir

É fato que a participação da indústria, e especialmente da indústria de transformação, no Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil e no PIB da indústria mundial vem caindo. Outro fato é que temos dado pouca importância ao impacto disso no crescimento e no desenvolvimento do País, apesar das inúmeras evidências que aí estão.

Considerando o PIB brasileiro, a participação da indústria manufatureira, que há poucas décadas ultrapassava os 20%, caiu em 2021 à casa dos 11%. Da mesma forma, a nossa fatia no agregado da indústria de transformação mundial vem caindo há muitos anos. Comparando 2005 a 2020, vimos uma migração da produção dos países desenvolvidos para os em desenvolvimento, na busca de custos mais baixos e condições mais competitivas. Assim, a participação dos EUA no total da manufatura global passou de 22,4% para 15,9%; a do Japão, de 9,4% para 6,6%; a da Alemanha, de 6,5% para 4,6%; a da Itália, de 3,3% para 1,9%. De outro lado, a Indonésia evoluiu de 1,3% para 1,6%; a Índia, de 1,7% para 3%; e a China, de 13,7% para 31,3%. Mas o Brasil, ao contrário, também recuou, de 2,2% para 1,3%.

Em 2005 tínhamos a 9.ª maior indústria de transformação do mundo. Em 2021, a 15.ª. A Índia, por sua vez, ocupou a quinta posição em 2021. E, se olharmos um pouco mais longe, em 1980 o nosso parque industrial equivalia à soma da capacidade industrial de Tailândia, Malásia, Coreia do Sul e China somadas. O que significa uma pouco desprezível perda de protagonismo no cenário da indústria mundial.

O ranking global de valor adicionado da indústria de transformação – Manufacturing Value Added (MVA) –, publicado pela United Nations Industrial Development Organization (Unido), mostra que a participação da indústria brasileira no PIB em 2021 foi de apenas 10,2%, ante a média de 22,9% do grupo de economias industriais de renda média ao qual pertencemos, e o MVA per capita do Brasil, de US$ 875, representa só 42% do valor do mesmo grupo de países industrializados de renda média. E mais: a participação da média e alta intensidade tecnológica no MVA do Brasil foi de 33,7% em 2021, ante 39,3% no grupo de países de referência acima citado. Resultado, em grande parte, da queda de investimentos na indústria de transformação, cuja participação no investimento total na economia caiu de 28%, em 2008, para 15%, dez anos depois.

Diversas são as evidências de que estamos passando por um processo de desindustrialização. Algo que ocorre nas economias modernas somente quando a população ultrapassa o padrão de renda média e avança na transição de empregos de subsistência e pouco qualificados para outros em setores mais dinâmicos, especialmente no setor de serviços. O que vemos no Brasil é um processo de desindustrialização prematuro e muito mais acentuado. Antes de a indústria brasileira atingir a maturidade tecnológica e antes de o setor concluir um ciclo importante de contribuição ao crescimento da renda dos brasileiros e da economia do País. Saindo de cena antes de terminar o ato. Isso explica muito o avanço de produtos primários na nossa pauta de exportações, cuja participação passou de 17%, em 1990, para 45%, em 2020. E também a crescente dependência de manufaturados importados, que representaram 92% do total importado em 2020. Rafael Lucchesi, diretor da Confederação Nacional da Indústria (CNI), chama essa reprimarização da economia de especialização regressiva, e alerta que isso reduz a complexidade da economia e os avanços na produtividade, gera problemas no balanço de pagamentos e deixa o País dependente dos ciclos de preços internacionais, especialmente das commodities.

O economista Samuel Pessoa chama a atenção para o quanto o nosso sistema tributário penaliza a indústria. O setor paga muito mais impostos do que a agropecuária e os serviços. E Pessoa diz que esse jogo tem de ser equilibrado. Do ICMS arrecadado, por exemplo, a indústria de transformação paga 50% e o agronegócio, 10%. Também o manicômio tributário brasileiro penaliza muito mais a indústria que tem cadeias produtivas longas e, por isso, precisa conviver com diversos regimes tributários especiais. Assunto para a reforma tributária que está no Congresso Nacional.

A indústria pode ajudar muito mais o País. A cada R$ 1,00 que ela produz são gerados R$ 2,43 na economia brasileira, segundo a CNI. É quem mais investe em pesquisa e gera os empregos mais qualificados. Foi a indústria que catapultou a China de economia agrária rudimentar para maior economia do mundo em termos de paridade de poder de compra, em poucas décadas. A indústria de transformação é responsável por 60% das despesas de pesquisa e desenvolvimento (P&D) no mundo e é o setor que tem o maior impacto na produtividade da economia e no desenvolvimento de serviços sofisticados. Segundo o economista Paulo Gala, da FGV-SP, os países são ricos porque têm domínio tecnológico, e nenhuma nação chegou à fronteira tecnológica sem possuir um setor industrial forte. Gala cita Alemanha, Suécia, Coreia do Sul, Suíça, EUA, Finlândia e Dinamarca por sua altíssima produção industrial per capita.

Mas a nossa indústria de transformação precisa ter condições de competir com seus pares internacionais. E o custo Brasil, estimado pela CNI em R$ 1,5 trilhão anual, é uma pedra no caminho. Torna o País pouco competitivo e hostil para quem quer empreender e investir. Certamente, não é por incompetência do empresário brasileiro que a nossa indústria está encolhendo. É pelos entraves que são colocados a ela. Para superá-los, empresários próximos ao poder buscam proteção ou compensação. Empresas pequenas buscam isenções e apoios. Quem está no meio do caminho precisa fazer milagres para sobreviver e crescer. E, se quisermos aproveitar ao menos as sobras do processo de redesenho das cadeias mundiais de suprimentos – os chamados nearshoring, safeshoring, friendshoring ou simplesmente reshoring –, não devemos demorar a agir. Senão, a indústria caipira definitivamente vai ficar para trás e o País também.

Publicado em 21 de março de 2023, no jornal Estadão