Obstáculos da Reforma da Previdência

A aprovação do texto-base da reforma da Previdência pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, na quarta-feira (04/09), foi um avanço. Agora, segue para um teste final do plenário.

Como se o assunto fosse de interesse do governo e não do país, parte importante dos congressistas têm, ao longo do trâmite, colocado uma série de objeções, tentando reduzir seu escopo. Um dos pontos relevantes que ficou fora da proposta do relator é o das aposentadorias rurais, o que gera o maior déficit dentro do regime geral (o INSS).

Marcos Mendes, consultor legislativo do Senado, discorda que a proposta encaminhada inicialmente pelo governo cometa injustiça com os trabalhadores rurais, na medida em que propõe pequeno aumento de idade mínima e pequena contribuição (de R$ 600 anuais por grupo familiar), buscando principalmente garantir alguma integridade do cadastro. Curiosamente, há 15% da população no campo e 25% dos benefícios previdenciários destinados à aposentadoria rural.

Outro ponto que ficou fora da reforma é o que pretende disciplinar a concessão do benefício de prestação continuada (BPC). Mendes cita um exemplo para justificar a necessidade da mudança: considerando duas pessoas, uma que contribuiu a vida toda para receber um salário mínimo de aposentadoria, e outra que nunca contribuiu. As duas receberão a mesma aposentadoria com a mesma idade. E pior, a esposa daquele que não contribuiu pode pleitear outro BPC, enquanto a do que contribuiu não pode. Quem defende essa injustiça só pode estar mal informado.

As aposentadorias do setor público também geram reações dos congressistas. O economista José Márcio Camargo, professor da PUC-Rio, lembra que todos os funcionários públicos aposentados, número perto de um milhão, estão entre os 10% mais ricos da população, sendo que 80% deles fazem parte dos 5% mais ricos. Como o regime próprio dos servidores garantia uma série de privilégios, Camargo afirma ser a Previdência provavelmente o maior mecanismo de concentração de renda que o país tem hoje.

Por mais que a necessidade das mudanças propostas, unificando os regimes dos setores privado e público, seja de entendimento geral, certamente as resistências do corporativismo continuarão fortes. Se essa tramitação da reforma se alongar, o governo pode e deve encaminhar parte das mudanças propostas pela via infraconstitucional, por meio de legislação ordinária, como medidas provisórias e projetos de lei, que requerem quórum menor.

Uma reforma pela metade não será suficiente. O parlamentar que alegar que será aprovada a “reforma possível” estará conformado com um futuro incerto e com um país que não consegue recuperar o senso de urgência.

Publicado no Jornal A Tarde – Salvador/BA em 06.09.2019

A indústria quer cumprir seu papel

A indústria de transformação brasileira vem encolhendo rapidamente. De uma participação superior a 25% do PIB, representa hoje, não mais de 11%. Mas ainda recolhe algo próximo a 30% dos tributos federais, segundo estudo da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Na realidade, a indústria brasileira vem sendo penalizada não só com uma elevada carga tributária, mas também com uma burocracia paralisante, especialmente pela mais complexa e confusa estrutura de impostos do planeta, por normas regulamentadoras instituídas pelo antigo Ministério do Trabalho, sem similar em outros países, por restrições ambientais exageradas, por uma instabilidade cambial que dificulta a integração nas cadeias de suprimentos internacionais, por restrições de crédito competitivo, por encargos trabalhistas que desestimulam o emprego e por um governo que historicamente vinha travando as atividades, a não ser para umas poucas empresas próximas ao poder.

O Brasil se tornou um país caro para produzir, pouco competitivo. Ruchir Sharma, chefe de mercados emergentes do Morgan Stanley Investment Management, alerta que o Brasil vai bem quando os preços das commodities sobem e não tão bem quando eles caem, e sobre a necessidade de o país tornar-se menos dependente de produtos primários e concentrar-se mais no setor manufatureiro. Para sair dessa armadilha, diz ele, é fundamental reduzir gastos públicos. Destaca a necessidade da reforma da Previdência.

Preocupa quando alguns economistas pregam ser a abertura unilateral da economia a única forma de aumentar a eficiência da indústria no país. Não precisamos de proteção ou privilégios. E, sim, de condições isonômicas para competir. Escancarar as fronteiras mantendo as empresas brasileiras com as mãos atadas pelo Custo Brasil é expô-las a um jogo desigual, é falta de inteligência. Reformas microeconômicas realizadas pelo governo anterior e mudanças que vem sendo implantadas pelo governo atual podem resgatar a nossa competitividade e o potencial da indústria brasileira.

Publicado no Jornal A Notícia.

Novamente a reforma tributária

Voltou à cena a reforma tributária. Pela enésima vez. Em ocasiões anteriores, quando a sociedade pressionava por menos impostos, a resposta dos governos era de aumento de tributos, para conseguir pagar as contas públicas. Tivemos, assim, nos últimos 20 anos, um processo constante e crescente de transferência de recursos da sociedade para o poder público, visando cobrir gastos ineficientes, catapultando a carga tributária de 25% do PIB para 35%. E, lamentavelmente, quanto mais arrecadava, menos o Estado conseguia devolver ao contribuinte. Os investimentos do governo minguaram e os serviços públicos dispensam comentários. Os recursos foram ficando pelo caminho da má gestão, da corrupção, de uma máquina pública inchada, refém do corporativismo, que acabou esquecendo da sua função primeira que é servir à sociedade. E os bons servidores, aqueles que literalmente têm o espírito de servir, discordam dessas distorções tanto quanto todos nós.

Sempre que governos enfrentam crises fiscais, como hoje no Brasil e em vários estados do País, a primeira tentativa de solução passa pela transferência da conta para a sociedade, via aumento de impostos. No Brasil isso ficou mais difícil porque a carga chegou a um nível tal que está asfixiando as famílias, que para consumir precisam endividar-se, e também as empresas, que não conseguem mais investir o suficiente para fazer a economia reagir com a intensidade necessária à absorção de uma multidão de desempregados. Além do que, experiências de outros países mostram que reformas focadas em cortes de gastos, a exemplo da Espanha e Irlanda, têm levado a recuperações econômicas mais robustas do que as que optaram pelo aumento de tributos, como a italiana. 

Em nosso país, todos pagam impostos demais, especialmente a população, que destina maior parcela da sua renda ao consumo, e que, por isso, deve ser a primeira a se beneficiar quando a maior eficiência da gestão pública permitir uma redução da carga tributária. Da mesma forma, olhando os agentes econômicos, a indústria de transformação, que, representando hoje não mais do que 11% do PIB, recolhe ainda algo como 30% dos tributos federais.

A reforma tributária que precisamos deve simplificar a complicadíssima estrutura de impostos que temos no País, com mais de 60 tributos e uma centena de obrigações acessórias, e que, segundo a Confederação Nacional da Indústria, obriga as empresas a seguir quase quatro mil normas e estar atentas a uma média de 30 novas regras tributárias editadas diariamente. E que, a partir do encaminhamento do ajuste fiscal, estabeleça um plano de redução gradativa dos impostos, inicialmente para as camadas menos favorecidas da população e depois para as empresas, permitindo-lhes retomar o papel de protagonistas de um crescimento econômico acelerado e consistente.

A indústria contra os privilégios

Partindo do pressuposto que salvaguardas geram ineficiências, por outro lado não parece razoável prejudicar ainda mais a competitividade de um setor com a importância que tem para a economia. 

Alguns analistas e economistas têm dito que as empresas brasileiras vivem protegidas numa economia fechada, empenhadas na busca de privilégios, e por isso são ineficientes e servem mal à toda sociedade. E que a solução seria a abertura unilateral da economia e o corte raso de subsídios e incentivos, por exemplo. O que afetaria especialmente a indústria de transformação, mais vulnerável a uma reforma apressada das regras de comércio exterior. Devemos lembrar que generalizações normalmente são injustas, perigosas, e certamente não indicarão o caminho correto.

Partindo do pressuposto que privilégios geram ineficiência, e por isso devem ser abolidos, por outro lado não parece razoável prejudicar ainda mais a competitividade de um setor com a importância que tem a indústria na economia brasileira. Segundo a Confederação Nacional da Indústria (CNI), a participação do setor no PIB em 2017 foi de 21,5% contra 5,3% das exportações do país e por 68% dos gastos em pesquisa e desenvolvimento do setor privado. Gerou 20,3% dos empregos formais, contra 3,3% da agropecuária e 19,8% do comércio e empregos com salários mais elevados. E responde por 25,1% da arrecadação previdenciária, para 1,6% da agropecuária e 14,5% do comércio. Seu efeito multiplicador na economia (riqueza gerada no conjunto por unidade gerada no setor) é 2,32, bem acima dos 1,67 da agricultura e 1,51 do comércio e serviços. Paradoxalmente, apesar de toda essa contribuição à sociedade é penalizada com uma carga tributária confiscatória e desequilibrada: 31,8% dos tributos federais em 2017, contra 0,3% da agropecuária e 16% do comércio.

Pior se olharmos só a indústria de transformação. Segundo levantamento efetuado pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), apesar de a sua participação no PIB ter caído para 11,9%, responde por 26,5% da arrecadação federal, sendo de longe o setor mais penalizado. Passou por forte processo de transferência de valor agregado para o setor financeiro e para cobrir as ineficiências do setor público. As consequências desse processo pernicioso são apontadas no estudo: redução de 29% na participação da indústria de transformação no PIB entre 1995 e 2016, de 16,8% para 11,9%, mais do que o dobro da correspondente queda da indústria mundial (12,6%) de 19,3% para 16,9%, fazendo com que a fatia do Brasil na indústria mundial caísse de 2,1% para 1,6% e a participação do país nas exportações mundiais de manufaturados reduzisse de 0,81% para 0,61%.

O impacto desse descaso para com a indústria também pode ser percebido na baixa produtividade, um dos grandes responsáveis pela falta de crescimento da nossa economia. Em 1950, a participação do setor manufatureiro no PIB era de 11,6% e a nossa produtividade correspondia a 25% da norte-americana. Já em 1980, a indústria chegou a 20,2% do PIB e a produtividade a 40,3% dos Estados Unidos. Em 2015, os números voltaram a 11,4% e 24,9%, respectivamente. Portanto, quem mais pode contribuir para o crescimento do Brasil está sendo fortemente penalizado. Um tiro no pé.

Quando a Índia lança uma política industrial chamada Make in India e diversos países, liderados recentemente pelos Estados Unidos, reduzem alíquotas de imposto de renda para tornar as suas indústrias mais competitivas, está mais do que na hora de o Brasil decidir a sua estratégia para o desenvolvimento futuro.

Estudo elaborado em 2019 pela consultoria Ernst & Young para a CNI revelou que a redução de alíquotas de imposto sobre a renda de empresas normalmente busca fomentar investimentos e aumentar a competitividade internacional. A alíquota média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que no ano 2000 estava pouco acima dos 32%, caíra já para 24,1% sem curiosamente, ou não, afetar a arrecadação, que oscilou levemente em torno dos 34% do PIB. Os Estados Unidos e a Argentina, importantes parceiros comerciais do Brasil, reduziram as suas de 35% para 21% e 25% (gradualmente até 2020) respectivamente. Na África do Sul, a alíquota é de 28%, na China e Chile, 25%, na Rússia, 20%, e no Paraguai, 10%. Brasil e Índia, com 34%, vão ficar defasados se não acompanharem o movimento.

Aliás, o ministro da Economia, Paulo Guedes já anunciou estar preocupado com a questão. Ainda mais que no Brasil as empresas enfrentam outros desafios como a absurda complexidade da estrutura de impostos cobrados, a imprevisibilidade legislativa, do judiciário e das instâncias administrativas na área tributária. Além do agravante de a maioria das empresas ter de recolher impostos antes de receber do cliente, com forte impacto na necessidade de capital de giro, quando sabemos que a disponibilidade de crédito não é das mais generosas no país.

Combater os privilégios e distorções na relação do governo com o setor privado é desejável e necessário. Mas como a grande maioria da indústria brasileira nunca fez parte deste cenário, o tratamento a ser aplicado deve matar a doença e não o paciente. O único benefício que o setor precisa chama competitividade, isto é, a redução do Custo Brasil.

A agenda do passado

O Brasil ainda está andando em círculo na discussão de temas como reformas tributária e previdenciária, baixa produtividade, desequilíbrio fiscal e instabilidade cambial. Enquanto isso, países que constroem o seu protagonismo neste novo mundo de mudanças disruptivas vêm se ocupando crescentemente da agenda do futuro, que envolve economia digital, inteligência artificial, blockchain, indústria 4.0, plataformas e negócios escaláveis.

Continuamos o pequeno grande país rico, que quer realmente ser grande, mas não consegue crescer. Porque não é competitivo, a não ser na exportação de commodities onde foi abençoado pela natureza com fortes vantagens comparativas internacionais. Não é competitivo porque tem baixa produtividade, consequência de muitos anos de baixo investimento e de gastos ineficientes do poder público. E a iniciativa privada tem investido pouco, justamente porque a agenda do passado preocupa e não permite retornos adequados.

O último relatório Doing Business do Banco Mundial, ranking que classifica os países pela qualidade do ambiente para fazer negócios, aponta o Brasil na 109ª posição entre 190 países. Mesmo tendo avançado 16 posições em função de importantes reformas microeconômicas, como a trabalhista realizada no governo Temer, continuamos na lanterna entre os Brics, com a Rússia na 31ª posição, a China na 46ª, a Índia na 77ª e a África do Sul na 82ª. Nosso item mais mal avaliado é o pagamento de impostos — o 184º lugar se deve à alta carga tributária e ao inigualável emaranhado burocrático que é a nossa estrutura de impostos. Foi isso que certamente levou o Ministro da Economia Paulo Guedes, ainda durante a campanha no ano passado, a propor forte simplificação dos tributos e redução da carga em direção aos 25% do PIB, num horizonte de 10 anos. Nível, aliás, que tínhamos duas décadas atrás, quando, com gastos mais eficientes, conseguíamos, mesmo com menos impostos, investir 25% do PIB, contra 15% atualmente.

De acordo com levantamento do observatório de Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas, de 2000 a 2017 a média anual do investimento público do Brasil foi de apenas 1,92% do PIB, o segundo mais baixo de um grupo de 42 países avaliados. O que não tem sido suficiente nem para repor a depreciação do estoque de capital.

Especialmente na infraestrutura. Segundo a Secretaria do Programa de Parceria em Investimentos (PPI), o governo está investindo apenas 0,6% do PIB, comparados aos 5% que investia quando cobrava menos impostos, há 20 anos. A rigidez orçamentária, que engessa os gastos públicos, obrigando a despesas correntes crescentes, também tem penalizado os investimentos, que equivocadamente são classificados como discricionários, ou seja, secundários. Distorções gravadas na Constituição de 1988 e regras inadequadas para o orçamento público penalizam justamente aqueles gastos, que criam as bases para o crescimento do País. Quando deveríamos estar empenhados em romper esse círculo vicioso que nos mantêm reféns da armadilha da renda média, vemos o centro do poder envolvido em disputas menores, na medição de forças, em demonstrações de que boa parte do poder público continua mais preocupada com seus interesses privados. Enquanto isso, outros países avançam com olhos no futuro.