A cura e os efeitos colaterais

O Covid-19 surpreendeu o mundo, deixando a todos desorientados, e tem obrigado governos a usar bazucas e canhões para enfrentar um inimigo invisível. De um lado, um confinamento que derruba a demanda, e de outro, a paralisação de quem produz aleijando a oferta. Uma recessão generalizada já é certa em 2020, talvez na casa dos 2% a 3%. Uma eventual depressão já é visitada no horizonte. No Brasil em particular: quando ansiávamos sair da crise de 2015-2016, vemos agora previsões de queda da economia de 2% a 6% dependendo da duração da pandemia.

Estado de Calamidade Pública significa que a situação é anormal, que devemos aplicar medidas não convencionais. Não há dúvida de que a prioridade é salvar vidas. Mas será que vale tudo, que alguém nos garante o direito de gastar, sem termos que arcar com as consequências? Será que não precisamos mais nos preocupar com o fato de que o remédio que cura também pode matar, dependendo dos cuidados na aplicação? O que pode advir da explosão do desemprego (na Noruega, nas três primeiras semanas de fevereiro, o desemprego subiu de 2,3% para 10,9% em função da pandemia e forte queda nos preços do petróleo), da evaporação da renda das famílias, de problemas emocionais e outros mais?

Tradicionalmente, governos combatem recessões com política monetária. Reduzir taxa de juros é simples, rápido, fácil de ser revertido e traz menos problemas para o futuro. Mas é uma ferramenta indisponível, hoje, na maior parte dos países, dados os níveis historicamente reduzidos dos juros. Por esse motivo, e também pelo fato de confinamento levar a uma queda abrupta de liquidez de famílias e empresas, a principal alternativa passa a ser a política fiscal, o aumento dos gastos dos governos, para tentar manter a economia rodando. Vimos, nos últimos dias, o anúncio de robustas medidas de estímulo por parte de diversos países, na casa dos bilhões e até trilhões de dólares. Muito além do que foi feito na crise de 2008.

Só que políticas fiscais são remédios que curam, mas podem deixar efeitos colaterais perigosos. Basta ver o que fizemos do Brasil para enfrentar a crise de 2008. Equivocadamente, optamos por um forte aumento de gastos públicos permanentes, que, portanto, não puderam ser eliminados após a crise. Isso levou a um processo perverso e crescente de transferência de recursos da sociedade (famílias e empresas) para o poder público, para manter uma máquina governamental que hoje absorve em torno de 20% do PIB, estrangulando a capacidade do governo (investe menos de 2%) e do setor privado de investir, com as consequências nefastas da produtividade da economia e na capacidade das empresas de competir num mundo que continua razoavelmente globalizado. O resultado foi a recessão de 2015 e 2016, que deixou 13 milhões de desempregados, empresas com dificuldades de se adequar à nova economia digital e crise nos serviços públicos básicos. O setor público passou a servir a si e não ao público.

É mais do que um alerta. No mínimo, devemos aprender com os erros do passado. O Ministro da Economia Paulo Guedes sabe isso melhor do que ninguém, e por isso propôs segregar o que chamou de “Orçamento de Guerra” do orçamento regular, evitando que o aumento de despesas e do endividamento para combater a pandemia contaminem orçamentos futuros. Ressaltou que devem ser gastos temporários, e não permanentes, como ocorreu no passado.

Com boa fé, competência e convergência política, não há necessidade de desrespeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal, que prevê mecanismos para enfrentar situações excepcionais, nem sacrificar o teto dos gastos, que dentro do possível devemos procurar retomar já em 2021. A âncora fiscal deve ser preservada para não minar a confiança dos investidores, ainda mais se considerarmos que, além de todo aumento de gastos, a recessão esperada terá forte impacto na arrecadação de impostos, que poderá encolher R$ 300 bilhões se a economia cair 4,5%, afetando fortemente o caixa da União, de Estados e de municípios. A importante reforma da Previdência, aprovada no passado, não vai ajudar a neutralizar esse desequilíbrio nas contas, porque o resultado esperado não é no curto prazo, tanto que no primeiro bimestre do ano o déficit teve alta de 12,8%, e porque ela continuará sendo um importante desafio por si só.

Temos que enfrentar esse enorme inesperado e assustador desafio trazido pelo fenômeno do assim chamado novo coronavírus com maturidade. O pós-Covid-19 vai trazer desafios e oportunidades. Recolocar as contas em dia exigirá grande esforço e sacrifícios futuros. Não nos iludamos. Então, quanto mais responsabilidade fiscal tivermos agora, menores as privações futuras, e melhores condições teremos para embarcar numa recuperação da economia mundial prevista para 2021. Se aplicarmos com disciplina os remédios corretos para minimizar os efeitos colaterais.

Publicado no Diário do Comércio – MG em 23/05/2020.

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