Estímulo fiscal não é licença para gastar

Crises profundas requerem reflexões e avaliações equilibradas. Quem faz parte do problema e quem faz parte da solução? Quem deve ajudar e quem deve ser ajudado? Em que medida e de que forma? Quais os limites para que os remédios não matem?

Raghuram Rajan, ex-presidente do Banco Central da Índia e ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), afirma que nas sociedades “existe uma espécie de contrato social segundo o qual o Estado nos protege tanto da violência física quanto de ataques externos, mas também quando ocorrem calamidades internas de enormes proporções”. Cabe aos governos administrar da melhor maneira possível recursos escassos para salvar vidas e evitar um colapso da estrutura socioeconômica. Uma pandemia, em particular, requer robustos investimentos no sistema de saúde, e a correta gestão das relações sociais, para mitigar perdas humanas. É a prioridade. Mas requer, também, um decisivo apoio financeiro aos mais necessitados, na medida em que a sua fonte de renda fique comprometida com a crise, bem como aos agentes econômicos que geram os milhares de empregos que movimentam a economia, a começar por aqueles que não tenham condições de suportar o período de restrições por si só. É importante preservar empregos e evitar falências, para não realimentar o processo, e para permitir a recuperação, tão logo as restrições sejam eliminadas.

Quanto se pode exigir do Estado? Isso, naturalmente, varia de país para país, especialmente da saúde fiscal de cada um. Os esforços que vêm sendo feitos são proporcionais à incomum dimensão da crise provocada pelo novo coronavírus. Os pacotes anunciados pelos governos alcançam 16% do PIB no Reino Unido, 15% na Alemanha e França e 10% nos EUA, por exemplo, incluindo garantias de empréstimos, cortes de impostos, gastos extra orçamento. O último boletim mensal do banco UBS estima que, para preservar empregos e evitar a insolvência de empresas, os governos teriam que transferir de 1% a 2% do PIB ao setor privado a cada mês que vigorarem as restrições. Mas poucos países têm condições de fazê-lo sem criar sérios problemas para o futuro das contas públicas. O que os EUA, a Alemanha e o Japão podem, a Itália, o Brasil e grande parte dos países emergentes, por exemplo, não podem. Especialmente aqueles que pós crise financeira de 2008 se abarrotaram de empréstimos internacionais baratos, que em muitos casos não foram aplicados de forma adequada, e que agora estão sendo pressionados pelos credores para devolverem os recursos.

O Brasil, que vinha de 10 anos de farra fiscal (meados da década passada até meados desta) – em que se desperdiçaram os recursos do boom das commodities e se aumentaram a carga de impostos e a dívida pública para inchar gastos públicos permanentes – está em situação particularmente delicada, apesar dos esforços do governo passado e do atual para resgatar a capacidade do poder público de servir a sociedade de forma sustentável e deixar de servir-se dela. Por isso, o Brasil, infelizmente, não pode pretender responder à crise com a mesma intensidade de países mais disciplinados. As agências de rating têm nos alertado nesse sentido, bem como ao México e Colômbia, que contudo, ainda são investment grade. Segundo a Fitch Ratings, a nota de crédito do Brasil continua limitada pela precária situação fiscal e pelo aumento do endividamento. Também a Moody’s e a S&P Global advertem que, se o pacote para a crise não for desenhado de forma cuidadosa, com gastos temporários, para não comprometer o longo prazo, o país poderá ser “dragado” nas reavaliações de rating. Destacam que o governo (incluindo Legislativo e Judiciário) não deve perder de vista o compromisso com a agenda de reformas estruturais e a disciplina fiscal de longo prazo.

Nessa mesma linha, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, alertou, corretamente, que “a diferença de fazer as reformas ou não vai ser o formato da recuperação” após a pandemia, mais rápida ou mais lenta, mais sustentável ou menos. Portanto, a crise não nos libertou da lição de casa. Muito pelo contrário, porque continua não existindo almoço grátis, aliás muito mais escasso agora.

Publicado em 04 de maio de 2020 no Jornal O Estado de Minas.

A cura e os efeitos colaterais

O Covid-19 surpreendeu o mundo, deixando a todos desorientados, e tem obrigado governos a usar bazucas e canhões para enfrentar um inimigo invisível. De um lado, um confinamento que derruba a demanda, e de outro, a paralisação de quem produz aleijando a oferta. Uma recessão generalizada já é certa em 2020, talvez na casa dos 2% a 3%. Uma eventual depressão já é visitada no horizonte. No Brasil em particular: quando ansiávamos sair da crise de 2015-2016, vemos agora previsões de queda da economia de 2% a 6% dependendo da duração da pandemia.

Estado de Calamidade Pública significa que a situação é anormal, que devemos aplicar medidas não convencionais. Não há dúvida de que a prioridade é salvar vidas. Mas será que vale tudo, que alguém nos garante o direito de gastar, sem termos que arcar com as consequências? Será que não precisamos mais nos preocupar com o fato de que o remédio que cura também pode matar, dependendo dos cuidados na aplicação? O que pode advir da explosão do desemprego (na Noruega, nas três primeiras semanas de fevereiro, o desemprego subiu de 2,3% para 10,9% em função da pandemia e forte queda nos preços do petróleo), da evaporação da renda das famílias, de problemas emocionais e outros mais?

Tradicionalmente, governos combatem recessões com política monetária. Reduzir taxa de juros é simples, rápido, fácil de ser revertido e traz menos problemas para o futuro. Mas é uma ferramenta indisponível, hoje, na maior parte dos países, dados os níveis historicamente reduzidos dos juros. Por esse motivo, e também pelo fato de confinamento levar a uma queda abrupta de liquidez de famílias e empresas, a principal alternativa passa a ser a política fiscal, o aumento dos gastos dos governos, para tentar manter a economia rodando. Vimos, nos últimos dias, o anúncio de robustas medidas de estímulo por parte de diversos países, na casa dos bilhões e até trilhões de dólares. Muito além do que foi feito na crise de 2008.

Só que políticas fiscais são remédios que curam, mas podem deixar efeitos colaterais perigosos. Basta ver o que fizemos do Brasil para enfrentar a crise de 2008. Equivocadamente, optamos por um forte aumento de gastos públicos permanentes, que, portanto, não puderam ser eliminados após a crise. Isso levou a um processo perverso e crescente de transferência de recursos da sociedade (famílias e empresas) para o poder público, para manter uma máquina governamental que hoje absorve em torno de 20% do PIB, estrangulando a capacidade do governo (investe menos de 2%) e do setor privado de investir, com as consequências nefastas da produtividade da economia e na capacidade das empresas de competir num mundo que continua razoavelmente globalizado. O resultado foi a recessão de 2015 e 2016, que deixou 13 milhões de desempregados, empresas com dificuldades de se adequar à nova economia digital e crise nos serviços públicos básicos. O setor público passou a servir a si e não ao público.

É mais do que um alerta. No mínimo, devemos aprender com os erros do passado. O Ministro da Economia Paulo Guedes sabe isso melhor do que ninguém, e por isso propôs segregar o que chamou de “Orçamento de Guerra” do orçamento regular, evitando que o aumento de despesas e do endividamento para combater a pandemia contaminem orçamentos futuros. Ressaltou que devem ser gastos temporários, e não permanentes, como ocorreu no passado.

Com boa fé, competência e convergência política, não há necessidade de desrespeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal, que prevê mecanismos para enfrentar situações excepcionais, nem sacrificar o teto dos gastos, que dentro do possível devemos procurar retomar já em 2021. A âncora fiscal deve ser preservada para não minar a confiança dos investidores, ainda mais se considerarmos que, além de todo aumento de gastos, a recessão esperada terá forte impacto na arrecadação de impostos, que poderá encolher R$ 300 bilhões se a economia cair 4,5%, afetando fortemente o caixa da União, de Estados e de municípios. A importante reforma da Previdência, aprovada no passado, não vai ajudar a neutralizar esse desequilíbrio nas contas, porque o resultado esperado não é no curto prazo, tanto que no primeiro bimestre do ano o déficit teve alta de 12,8%, e porque ela continuará sendo um importante desafio por si só.

Temos que enfrentar esse enorme inesperado e assustador desafio trazido pelo fenômeno do assim chamado novo coronavírus com maturidade. O pós-Covid-19 vai trazer desafios e oportunidades. Recolocar as contas em dia exigirá grande esforço e sacrifícios futuros. Não nos iludamos. Então, quanto mais responsabilidade fiscal tivermos agora, menores as privações futuras, e melhores condições teremos para embarcar numa recuperação da economia mundial prevista para 2021. Se aplicarmos com disciplina os remédios corretos para minimizar os efeitos colaterais.

Publicado no Diário do Comércio – MG em 23/05/2020.

Caminhos para reduzir o desemprego

Não há dúvida de que a consequência mais perversa da recente recessão seja o alto nível de desemprego, que reage na mesma velocidade do baixo crescimento da nossa economia. E desemprego alto comprime o consumo, retroalimentando esse baixo crescimento. O que não significa, todavia, que a saída seja estimular o consumo, apenas um paliativo de curto prazo que não passado não distante nos proporcionou os chamados voos de galinha. Crescimento sustentável depende de equilíbrio entre oferta e demanda, o que passa pela eliminação dos gargalos da economia, aumentando o crescimento potencial.

De 2011 a 2018, o país cresceu a uma taxa média de apenas 0,59% ao ano. Períodos de maior crescimento foram respostas altos investimentos, reformas estruturais e gestão macroeconômica consistente. A má gestão pública tem sido um feio para o país: nos últimos seis anos, o setor público vem registrando déficits elevados, alimentando a dívida, que saltou de 51% do PIB (dívida bruta) para quase 80%. Principalmente a partir de 2013, um aumento e responsável do gasto público passou a ser utilizado para reanimar uma economia abalada pelo desleixo com as contas governamentais, verificado a partir de 2008. A consequência foi uma recessão importante e a urgente necessidade de um forte ajuste fiscal, ou seja, reequilibrar as contas, o que pode ser feito pelo caminho simplório, tradicional no Brasil, de aumento de impostos; ou pela via mais trabalhosa, mais consistente, de redução dos gastos públicos, alcançada pela maior eficiência.

O governo previa que, com a aprovação da reforma da Previdência, o país poderia criar 8 milhões de empregos até 2023, a taxa de juros básica, cair para 5,6% ao ano (já que já está em 4,5%), e a dívida do governo, reduzir para 76% do PIB. Para isso, as reformas precisam continuar: a tributária, administrativa (do Estado), e diversas microeconômicas. Para crescer, o Brasil precisa ser mais produtivo, o que depende tanto do aumento de investimentos públicos quanto dos privados. Os primeiros demandam ajuste das contas, e os segundos, um melhor ambiente de negócios. Segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o investimento tem um efeito multiplicador de 2 na economia: cada R$ 1 investido gera R$ 2 de PIB, dez vezes mais do que o gerado pelos demais gastos do governo. Motivo mais do que suficiente para preservar os investimentos em qualquer ajuste ou corte de gastos. É o caminho mais consistente para expansão da economia, do emprego e da própria arrecadação. O ministro Paulo Guedes sabe disso muito bem. Tomara que haja convergência política para o bom senso. Com o devido senso de urgência. É o caminho mais consistente para expansão da economia, do emprego e da própria arrecadação.

Publicado na Revista Ferramental em 20.03.2020.

 

Convergência política e senso de urgência para reduzir o desemprego

Não há dúvida de que a consequência mais perversa da recente recessão seja o alto nível de desemprego, que reage na mesma velocidade do baixo crescimento da nossa economia. E desemprego alto comprime o consumo, retroalimentando esse baixo crescimento. O que não significa, todavia, que a saída seja estimular o consumo, apenas um paliativo de curto prazo que num passado não distante nos proporcionou os chamados voos de galinha. Crescimento sustentável depende de equilíbrio entre oferta e demanda, o que passa pela eliminação dos gargalos da economia, aumentando o crescimento potencial.

Visitando a série histórica, entre 1943 e 1980 tivemos crescimento contínuo, a uma taxa média expressiva de 7,4% ao ano. Depois, veio a década perdida e outras três com taxas anuais médias de 1,67%, 2,63% e 3,71%. E o período recente, de 2011 a 2018, com apenas 0,59% (últimos dois anos, 1,1%). Períodos de maior crescimento foram respostas a altos investimentos, reformas estruturais e gestão macroeconômica consistente. De 1980 para 2018, o nosso PIB per capita (em ppp a dólar de 2011) caiu, em comparação com o dos EUA, de 39% para 25,8%, enquanto da China avançou de 2,5% para 28,9% e o da Coreia do Sul, de 17,5% para 66%. Isso mostra que, nas últimas quatro décadas, não conseguimos construir um ambiente estável para um crescimento acelerado, diferentemente de outros países.

Dado o peso do Estado na economia, a má gestão pública (todos os poderes) tem sido um freio para o país. Nos últimos seis anos, o setor público consolidado vem registrando déficits elevados, alimentando a dívida, que saltou de 51% do PIB (dívida bruta) para quase 80%. Principalmente a partir de 2013, um aumento e responsável do gasto público passou a ser utilizado para tentar reanimar uma economia abalada pelo desleixo com as contas governamentais verificado a partir de 2008. A consequência desses desmandos foi uma recessão importante e a urgente necessidade de um forte ajuste fiscal.

Ajuste fiscal significa reequilibrar as contas, o que pode ser feito pelo caminho simplório, e tradicionalmente utilizado no Brasil, de aumento de impostos, ou pela via mais trabalhosa, mas muito mais consistente, de redução dos gastos públicos, que em grande parte pode ser alcançada pela maior eficiência desses gastos. O economista italiano Francesco Giavazzi, da Universidade Bocconi, examinou 170 planos de ajuste fiscal em 16 países e concluiu que aqueles baseados em aumentos de tributos têm maior impacto negativo na atividade econômica do que os sustentados em cortes de gastos – aliás, um caminho que elimina incertezas e restabelece a confiança de investidores internos e externos.

No início do ano passado, técnicos do governo previam que, com aprovação da reforma da Previdência, o país poderia criar 8 milhões de empregos até 2023; a taxa de juros básica, cair para 5,6% ao ano (já está em 4,5%); e a dívida do governo, reduzir para 76% do PIB. Dá para sentir que as coisas estão melhorando, mas é claro que as reformas precisam continuar: a tributária, a administrativa (do Estado), e diversas microeconômicas. Ponto fundamental para voltarmos um nível mínimo de investimento que permita eliminar os gargalos da economia, a começar pelo investimento público, que tem sido maior prejudicado pelos cortes de gastos, por equivocadamente ser classificado no orçamento como despesa discricionária, em contrapartida a 96% de gastos obrigatórios, como previdenciários e salários de servidores.

Para crescer mais, o Brasil precisa ser mais produtivo, o que depende tanto do aumento dos investimentos públicos quanto dos privados. Os primeiros demandam ajuste das contas, e os segundos, um melhor ambiente de negócios. A média anual das inversões do governo no período 2000-2017 foi de 1,92% do PIB a segunda mais baixa em um grupo de 42 países analisados pelo Ibre/FGV. A Coreia do Sul, por exemplo, que, como vimos, vem dando passos largos para alcançar a renda per capita dos EUA, tem investido no total em torno de 30% do PIB, a China mais de 40%, e nós, na faixa dos 15%. Segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o investimento tem um efeito multiplicador de 2 na economia: cada R$ 1 investido gera R$ 2 de PIB, dez vezes mais do que o gerado pelos demais gastos do governo. Motivo mais do que suficiente para preservar os investimentos em qualquer ajuste ou corte de gastos. É o caminho mais consistente para expansão da economia, do emprego e da própria arrecadação. O ministro Paulo Guedes sabe disso muito bem. Tomara que haja convergência política para o bom senso. Com o devido senso de urgência.

Publicado no Correio Braziliense em 10/02/2020.

Preparados para a nova economia?

Na última edição do Global Summit da Singularity University, que ocorreu em São Francisco, na Califórnia, foram apresentadas novidades tecnológicas, ideias disruptivas e projeções sobre as revoluções que já estão acontecendo e as futuras. Isso nas mais diversas áreas, da medicina ao transporte, do consumo à fabricação, de formas de pagamento à exploração espacial. O princípio norteador foi apresentar soluções realmente novas. O que mais se ouviu foi a necessidade de mudar o “mindset”, o jeito de pensar. Um concurso, que aconteceu posteriormente em Hollywood, propôs-se a coletar ideias para resolver os problemas mais complexos e desafiadores da humanidade, dentro de um conceito de abundância 360°. Partiu do pressuposto que todos os problemas conhecidos são solucionáveis num futuro próximo, até mesmo a colonização do espaço.

Para os empresários, uma mensagem desafiadora: no futuro, que para muitos setores já bate à porta, as ofertas de valor serão mais seguras, eficientes e baratas. Um mundo que apresentará desafios, e também oportunidades, em velocidade crescente, a ser explorado por uma combinação inteligente entre jovens digitalizados e profissionais experientes. É essa agenda que ditará a competitividade e o avanço das nações, e vem ganhando importância não só nas economias ricas, mas também nas que não perderam o senso de urgência, como a China. No Brasil, por outro lado, continuamos com a agenda do passado, em questões como ajuste fiscal, baixa produtividade, falta de competitividade, principalmente pelo peso da ineficiência do Estado, serviços públicos de baixa qualidade, falta de infraestrutura. Ainda não conseguimos avançar para o grupo dos países desenvolvidos – presos na armadilha da renda média –, sob o critério de geração de riqueza econômica na velha economia. A grande maioria das empresas brasileiras continua focada em competir e sobreviver num ambiente que o velho e conhecido Custo Brasil torna altamente desafiador.

Se continuarmos resistindo às mudanças necessárias, ou desidratando projetos de reformas imprescindíveis, corremos grande risco de já estar comprando o bilhete para a segunda classe na nova economia, da escalabilidade, da inteligência artificial, da computação quântica, da internet das coisas, da indústria 4.0, da digitalização, do compartilhamento, da substituição da propriedade pelo uso, dos projetos interplanetários. Temos que levantar a régua do que temos convencionado chamar de “politicamente possível” em direção ao que é realmente necessário, para conseguirmos encaminhar com a devida urgência a agenda do passado e despertarmos para o novo mundo que, literalmente, está entrando sem pedir licença, com uma velocidade que irá surpreender.

Publicado na Revista Ferramental em 01.02.2020