Vamos resolver uma crise sem gerar outra

A Covid-19 tem obrigado governos a usar bazucas e canhões para enfrentar um inimigo invisível. De um lado, um confinamento que derruba a demanda, e de outro, a paralisação de quem produz, aleijando a oferta. Uma recessão generalizada já é certa em 2020, na casa dos 2% a 3%. Uma eventual depressão já é avistada. No Brasil, quando ansiávamos sair da crise de 2015-2016, vemos previsões de queda da economia de 2% a 6%. Não há dúvida de que a prioridade é salvar vidas, mas será que vale gastar sem arcar com as consequências? O que pode advir da explosão do desemprego, da evaporação da renda das famílias, de problemas emocionais e outros mais?

Hoje política monetária é uma ferramenta praticamente indisponível, dados os níveis historicamente reduzidos dos juros. Também pelo fato de o confinamento levar a uma queda abrupta de liquidez de famílias e empresas, a principal alternativa passa a ser a política fiscal, o aumento dos gastos dos governos.

Mas no Brasil não devemos repetir a experiência de 2008, quando para enfrentar a crise promovemos um aumento de gastos permanentes, num processo crescente de transferência de recursos da sociedade para o poder público, para manter uma máquina governamental que absorve 20% do PIB, estrangulando investimentos, produtividade e competitividade. O que resultou em desemprego, dificuldades de adequamento à economia digital e crise nos serviços públicos básicos.

Não há necessidade de desrespeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal, que prevê mecanismos para enfrentar situações excepcionais, nem o teto dos gastos, que devemos procurar retomar em 2021.

A âncora fiscal deve ser preservada para não minar a confiança dos investidores, ainda mais se considerarmos que a recessão esperada também terá forte impacto na arrecadação de impostos, que poderá encolher R$ 300 bilhões se a economia cair 4,5%. Quanto mais responsabilidade fiscal tivermos agora, menores as privações futuras, e melhores condições teremos para embarcar numa recuperação da economia mundial prevista para 2021.

Publicado no Jornal Notícias do Dia (impresso e on-line) em 02/05/2020.

Estímulo fiscal não é licença para gastar

Crises profundas requerem reflexões e avaliações equilibradas. Quem faz parte do problema e quem faz parte da solução? Quem deve ajudar e quem deve ser ajudado? Em que medida e de que forma? Quais os limites para que os remédios não matem?

Raghuram Rajan, ex-presidente do Banco Central da Índia e ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), afirma que nas sociedades “existe uma espécie de contrato social segundo o qual o Estado nos protege tanto da violência física quanto de ataques externos, mas também quando ocorrem calamidades internas de enormes proporções”. Cabe aos governos administrar da melhor maneira possível recursos escassos para salvar vidas e evitar um colapso da estrutura socioeconômica. Uma pandemia, em particular, requer robustos investimentos no sistema de saúde, e a correta gestão das relações sociais, para mitigar perdas humanas. É a prioridade. Mas requer, também, um decisivo apoio financeiro aos mais necessitados, na medida em que a sua fonte de renda fique comprometida com a crise, bem como aos agentes econômicos que geram os milhares de empregos que movimentam a economia, a começar por aqueles que não tenham condições de suportar o período de restrições por si só. É importante preservar empregos e evitar falências, para não realimentar o processo, e para permitir a recuperação, tão logo as restrições sejam eliminadas.

Quanto se pode exigir do Estado? Isso, naturalmente, varia de país para país, especialmente da saúde fiscal de cada um. Os esforços que vêm sendo feitos são proporcionais à incomum dimensão da crise provocada pelo novo coronavírus. Os pacotes anunciados pelos governos alcançam 16% do PIB no Reino Unido, 15% na Alemanha e França e 10% nos EUA, por exemplo, incluindo garantias de empréstimos, cortes de impostos, gastos extra orçamento. O último boletim mensal do banco UBS estima que, para preservar empregos e evitar a insolvência de empresas, os governos teriam que transferir de 1% a 2% do PIB ao setor privado a cada mês que vigorarem as restrições. Mas poucos países têm condições de fazê-lo sem criar sérios problemas para o futuro das contas públicas. O que os EUA, a Alemanha e o Japão podem, a Itália, o Brasil e grande parte dos países emergentes, por exemplo, não podem. Especialmente aqueles que pós crise financeira de 2008 se abarrotaram de empréstimos internacionais baratos, que em muitos casos não foram aplicados de forma adequada, e que agora estão sendo pressionados pelos credores para devolverem os recursos.

O Brasil, que vinha de 10 anos de farra fiscal (meados da década passada até meados desta) – em que se desperdiçaram os recursos do boom das commodities e se aumentaram a carga de impostos e a dívida pública para inchar gastos públicos permanentes – está em situação particularmente delicada, apesar dos esforços do governo passado e do atual para resgatar a capacidade do poder público de servir a sociedade de forma sustentável e deixar de servir-se dela. Por isso, o Brasil, infelizmente, não pode pretender responder à crise com a mesma intensidade de países mais disciplinados. As agências de rating têm nos alertado nesse sentido, bem como ao México e Colômbia, que contudo, ainda são investment grade. Segundo a Fitch Ratings, a nota de crédito do Brasil continua limitada pela precária situação fiscal e pelo aumento do endividamento. Também a Moody’s e a S&P Global advertem que, se o pacote para a crise não for desenhado de forma cuidadosa, com gastos temporários, para não comprometer o longo prazo, o país poderá ser “dragado” nas reavaliações de rating. Destacam que o governo (incluindo Legislativo e Judiciário) não deve perder de vista o compromisso com a agenda de reformas estruturais e a disciplina fiscal de longo prazo.

Nessa mesma linha, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, alertou, corretamente, que “a diferença de fazer as reformas ou não vai ser o formato da recuperação” após a pandemia, mais rápida ou mais lenta, mais sustentável ou menos. Portanto, a crise não nos libertou da lição de casa. Muito pelo contrário, porque continua não existindo almoço grátis, aliás muito mais escasso agora.

Publicado em 04 de maio de 2020 no Jornal O Estado de Minas.

A cura e os efeitos colaterais

O Covid-19 surpreendeu o mundo, deixando a todos desorientados, e tem obrigado governos a usar bazucas e canhões para enfrentar um inimigo invisível. De um lado, um confinamento que derruba a demanda, e de outro, a paralisação de quem produz aleijando a oferta. Uma recessão generalizada já é certa em 2020, talvez na casa dos 2% a 3%. Uma eventual depressão já é visitada no horizonte. No Brasil em particular: quando ansiávamos sair da crise de 2015-2016, vemos agora previsões de queda da economia de 2% a 6% dependendo da duração da pandemia.

Estado de Calamidade Pública significa que a situação é anormal, que devemos aplicar medidas não convencionais. Não há dúvida de que a prioridade é salvar vidas. Mas será que vale tudo, que alguém nos garante o direito de gastar, sem termos que arcar com as consequências? Será que não precisamos mais nos preocupar com o fato de que o remédio que cura também pode matar, dependendo dos cuidados na aplicação? O que pode advir da explosão do desemprego (na Noruega, nas três primeiras semanas de fevereiro, o desemprego subiu de 2,3% para 10,9% em função da pandemia e forte queda nos preços do petróleo), da evaporação da renda das famílias, de problemas emocionais e outros mais?

Tradicionalmente, governos combatem recessões com política monetária. Reduzir taxa de juros é simples, rápido, fácil de ser revertido e traz menos problemas para o futuro. Mas é uma ferramenta indisponível, hoje, na maior parte dos países, dados os níveis historicamente reduzidos dos juros. Por esse motivo, e também pelo fato de confinamento levar a uma queda abrupta de liquidez de famílias e empresas, a principal alternativa passa a ser a política fiscal, o aumento dos gastos dos governos, para tentar manter a economia rodando. Vimos, nos últimos dias, o anúncio de robustas medidas de estímulo por parte de diversos países, na casa dos bilhões e até trilhões de dólares. Muito além do que foi feito na crise de 2008.

Só que políticas fiscais são remédios que curam, mas podem deixar efeitos colaterais perigosos. Basta ver o que fizemos do Brasil para enfrentar a crise de 2008. Equivocadamente, optamos por um forte aumento de gastos públicos permanentes, que, portanto, não puderam ser eliminados após a crise. Isso levou a um processo perverso e crescente de transferência de recursos da sociedade (famílias e empresas) para o poder público, para manter uma máquina governamental que hoje absorve em torno de 20% do PIB, estrangulando a capacidade do governo (investe menos de 2%) e do setor privado de investir, com as consequências nefastas da produtividade da economia e na capacidade das empresas de competir num mundo que continua razoavelmente globalizado. O resultado foi a recessão de 2015 e 2016, que deixou 13 milhões de desempregados, empresas com dificuldades de se adequar à nova economia digital e crise nos serviços públicos básicos. O setor público passou a servir a si e não ao público.

É mais do que um alerta. No mínimo, devemos aprender com os erros do passado. O Ministro da Economia Paulo Guedes sabe isso melhor do que ninguém, e por isso propôs segregar o que chamou de “Orçamento de Guerra” do orçamento regular, evitando que o aumento de despesas e do endividamento para combater a pandemia contaminem orçamentos futuros. Ressaltou que devem ser gastos temporários, e não permanentes, como ocorreu no passado.

Com boa fé, competência e convergência política, não há necessidade de desrespeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal, que prevê mecanismos para enfrentar situações excepcionais, nem sacrificar o teto dos gastos, que dentro do possível devemos procurar retomar já em 2021. A âncora fiscal deve ser preservada para não minar a confiança dos investidores, ainda mais se considerarmos que, além de todo aumento de gastos, a recessão esperada terá forte impacto na arrecadação de impostos, que poderá encolher R$ 300 bilhões se a economia cair 4,5%, afetando fortemente o caixa da União, de Estados e de municípios. A importante reforma da Previdência, aprovada no passado, não vai ajudar a neutralizar esse desequilíbrio nas contas, porque o resultado esperado não é no curto prazo, tanto que no primeiro bimestre do ano o déficit teve alta de 12,8%, e porque ela continuará sendo um importante desafio por si só.

Temos que enfrentar esse enorme inesperado e assustador desafio trazido pelo fenômeno do assim chamado novo coronavírus com maturidade. O pós-Covid-19 vai trazer desafios e oportunidades. Recolocar as contas em dia exigirá grande esforço e sacrifícios futuros. Não nos iludamos. Então, quanto mais responsabilidade fiscal tivermos agora, menores as privações futuras, e melhores condições teremos para embarcar numa recuperação da economia mundial prevista para 2021. Se aplicarmos com disciplina os remédios corretos para minimizar os efeitos colaterais.

Publicado no Diário do Comércio – MG em 23/05/2020.