Enfrentar o tabu dos gastos sociais

Há muitos anos convivemos com gastos públicos de baixa qualidade. Essa ineficiência dos dispêndios, pautados por posições ideológicas, defesa de privilégios e falta de avaliação de resultados, têm exigido transferências crescentes de recursos da sociedade, sob o pretexto de minimamente atender a questão social.

Em recente debate promovido pela Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (Fiesc), o economista Marcos Lisboa, presidente do Insper, alertou que se não enfrentarmos adequadamente a questão dos gastos públicos, continuaremos na trajetória que vem deixando o Brasil para trás há 40 anos, e crescendo menos do que os demais emergentes há 20 anos.

Na mesma direção, o livro “Reforma do Estado Brasileiro – Transformando a Atuação do Governo”, recentemente lançado, e que conta com a contribuição de 35 economistas, chama a atenção para o fato de que um Estado que funciona mal e gasta muito explica boa parte do baixo crescimento do País nas últimas décadas. E que, se quisermos dar mais atenção à seguridade social e saúde pública, devemos gastar menos em atividades-meio do Estado e eliminar sobreposições de auxílios.

Outra boa avaliação sobre a oportunidade de melhorar esses gastos é feita pelo cientista político Fernando Abrucio, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Destaca a necessidade do que chama de condicionalidades para os beneficiários, de modo que a transferência de recursos esteja vinculada à criação de capacidades familiares ou individuais que levem as pessoas a sair da situação inicial de pobreza ao longo do tempo. Famílias pobres com crianças e jovens, por exemplo, deveriam manter, como no Bolsa Família, a ajuda vinculada à educação e saúde. Poder-se-ia buscar com isso a redução da alta evasão no ensino médio, trazendo aumento de oportunidades para a juventude.

Um dos trabalhos que vinha sendo conduzido pela equipe econômica, na busca de recursos para o programa Renda Brasil, rebatizado de Renda Cidadã, buscava reavaliar os programas sociais pouco eficientes, justamente para que mais pessoas, mais necessitadas, pudessem ser beneficiadas. Com os orçamentos do Bolsa Família (R$ 30 bilhões), do abono salarial (R$ 18 bilhões) e do seguro defeso (R$ 3 bilhões) já se formaria um fundo que conseguiria atender 57,3 milhões de beneficiários com um valor médio de R$ 232, bem acima do auxílio do Bolsa Família e para muito mais pessoas. Equivocadamente a ideia foi abortada sob a alegação de que se estaria tirando dos pobres para dar aos paupérrimos. Seria na realidade um avanço na qualidade do gasto público, na construção de um amplo e assertivo programa de renda mínima.

Se quisermos restabelecer os fundamentos para um crescimento mais acelerado e consistente, com geração de bons empregos e renda, evitando novas décadas perdidas, devemos criar a disposição de desafiar o tabu dos gastos públicos, principalmente da sua qualidade, como domamos a inflação com o Plano Real. Enfrentar os gastos só “pelo” crescimento da economia tende a ser voo de galinha, porque sempre existirão os períodos de vacas magras que trarão o problema à tona com gravidade crescente. Por outro lado, enfrentá-los “para” o crescimento permite a consolidação de bases sólidas para um crescimento continuado, menos suscetível às mudanças de temperatura no ambiente externo. Lembrando que a falta de senso de urgência vai tornando a solução sempre mais cara.

Publicado no Jornal Diário do Comércio – MG.

O desafio dos gastos sociais

Em recente debate, o economista Marcos Lisboa, presidente do Insper, alertou que se não enfrentarmos adequadamente a questão dos gastos públicos continuaremos na trajetória que vem deixando o Brasil para trás há 40 anos, e crescendo menos do que os demais emergentes há 20 anos.

Na mesma direção, o livro Reforma do Estado brasileiro – Transformando a atuação do governo, recentemente lançado, e que conta com a contribuição de 35 economistas, chama a atenção para o fato de que um Estado que funciona mal e gasta muito explica boa parte do baixo crescimento do país nas últimas décadas.

E que, se quisermos dar mais atenção à seguridade social e saúde pública, devemos gastar menos em atividades-meio do Estado e eliminar sobreposições de auxílios.

O problema é que, há muitos anos, convivemos com gastos públicos de baixa qualidade. Essa ineficiência dos dispêndios, pautados por posições ideológicas, defesa de privilégios e falta de avaliação de resultados, têm exigido transferências crescentes de recursos da sociedade, sob o pretexto de minimamente atender à questão social. Outra obra, organizada por Felipe Salto e Josué Pellegrini, diretores da Instituição Fiscal Independente do Senado, intitulada Contas públicas no Brasil, contesta, com base em números oficiais, falsas crenças de que gastamos pouco na área social. Mostra que investimos proporcionalmente mais na área do que os demais países da América Latina.

De 12,8% do PIB em 2002, esses gastos subiram para 16,5% em 2018 e representam 70% das despesas do governo federal, excluídos os gastos com dívida. E, mesmo assim, aponta o livro, os nossos indicadores sociais são ruins e a desigualdade social é grande, escancarando uma vasta oportunidade para ganhos de qualidade, no que denominam eficiência alocativa e técnica nos programas sociais. Ou seja, é necessário assegurarmos que os recursos efetivamente cheguem aos mais necessitados, e de forma adequada.

Outra boa avaliação sobre a oportunidade de melhorar esses gastos é feita pelo cientista político Fernando Abrucio, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV). Destaca a necessidade do que chama de condicionalidades para os beneficiários, de modo que a transferência de recursos esteja vinculada à criação de capacidades familiares ou individuais que levem as pessoas a sair da situação inicial de pobreza ao longo do tempo. Famílias pobres com crianças e jovens, por exemplo, deveriam manter, como no Bolsa-Família, a ajuda vinculada à educação e à saúde. Poder-se-ia buscar com isso a redução da alta evasão no ensino médio, trazendo aumento de oportunidades para a juventude. Outras condicionalidades para indivíduos poderiam ser cursos profissionalizantes ou trabalhos comunitários, de modo que as próprias comunidades se envolvam na solução dos problemas sociais.

Um dos trabalhos que vinham sendo conduzidos pela equipe econômica, na busca de recursos para o programa Renda Brasil, rebatizado de Renda Cidadã, buscava reavaliar os programas sociais pouco eficientes, justamente para que mais pessoas, mais necessitadas, pudessem ser beneficiadas. Com os orçamentos do Bolsa-Família (R$ 30 bilhões), do abono salarial (R$ 18 bilhões) e do seguro defeso (R$ 3 bilhões) já se formaria um fundo que conseguiria atender 57,3 milhões de beneficiários com um valor médio de R$ 232, bem acima do auxílio do Bolsa-Família e para muito mais pessoas. Equivocadamente, a ideia foi abortada sob a alegação de que se estaria tirando dos pobres para dar aos paupérrimos. Seria, na realidade, um avanço na qualidade do gasto público, na construção de um amplo e assertivo programa de renda mínima. Não existe nenhuma teoria ou referência que diga, ou permita, ou recomende que os gastos sociais possam ou devam ser ineficientes. Esse fundo poderia ser reforçado, ainda, com a revisão dos privilégios das corporações privadas e públicas que capturaram o Estado, e da questão dos direitos adquiridos que são incompatíveis com a realidade brasileira, e que muitos países já souberam revisar.

Se quisermos restabelecer os fundamentos para um crescimento mais acelerado e consistente, com geração de bons empregos e renda, evitando novas décadas perdidas, devemos criar a disposição de desafiar o tabu dos gastos públicos, principalmente da sua qualidade, como domamos a inflação com o Plano Real. Enfrentar os gastos só “pelo” crescimento da economia tende a ser voo de galinha, porque sempre existirão os períodos de vacas magras que trarão o problema à tona com gravidade crescente. Por outro lado, enfrentá-los “para” o crescimento permite a consolidação de bases sólidas para um crescimento continuado, menos suscetível às mudanças de temperatura no ambiente externo. Lembrando que a falta de senso de urgência vai tornando a solução sempre mais cara.

Publicado no Estado de Minas – MG.

Atalhos envolvem riscos

Por princípio, existe um pacto entre governos e sociedades para que os primeiros captem (via impostos) parte da riqueza produzida pelos segundos, para prestar-lhes os serviços básicos pactuados. Quanto mais eficientes os governos, menos recursos precisam buscar das famílias e de empresas. Quanto mais qualidade no gasto, menor a quantidade, isto é, menor a conta a ser paga pelos cidadãos, e melhor o nível dos serviços que recebem. Infelizmente, o Brasil tem se preocupado muito com a quantidade e pouco com a qualidade. Somos o país com a pior relação do planeta entre impostos arrecadados e serviços devolvidos à sociedade. Temos a mais alta carga tributária entre os países em desenvolvimento, e os serviços que todos conhecemos.

No pacote fiscal e monetário para enfrentar a pandemia, fomos arrojados (11,8% do PIB), na comparação com os pares emergentes, tanto quanto a Índia (também 11,8%), porém mais do que África do Sul (10%), China (4,5%), Indonésia (4,4%), Turquia (3,8%), Rússia (3,4%), Colômbia (2,8%) e México (1,2%). Por outro lado, no pagamento do auxílio emergencial de R$ 600, houve, segundo estimativas do Tribunal de Contas da União (TCU), pagamentos indevidos que podem chegar a 20%, ou algo próximo a R$ 50 bilhões. A pressão foi toda pela quantidade. A preocupação com a qualidade ficou na sombra.

Existe um velho e sábio ditado: se souber gastar, não vai faltar. Vale para qualquer um de nós, para empresas e para governos. E “governos” não significam apenas o Poder Executivo, mas também o Legislativo e o Judiciário, não só pelos gastos internos, mas também pelas decisões que tomam e que impactam os dispêndios. A nível federal, estadual e municipal. Um bom início de avaliação é entender que as corporações se apropriaram do Estado brasileiro. As públicas e as privadas. E a classe política, de maneira geral, tem tido pouca disposição para enfrentar poderosos lobbies que defendem bilhões de benefícios fiscais (inclusive a desoneração da folha dos famosos 17 setores, que prejudica alguma eventual desoneração para todos), universidades federais gratuitas para quem pode pagar, remunerações de servidores acima do teto constitucional e muitos outros privilégios.

A reforma administrativa é um passo importante na direção da qualidade do gasto. Tão ampla e irrestrita quanto a pressão da sociedade viabilizar. Se a população não conhecer melhor o problema e não se manifestar, talvez pouco se avançará. Uma primeira e importante etapa da reforma pode acontecer pela via das legislações ordinária e complementar, a partir de projetos em tramitação no Congresso, pela regulamentação de PECs já aprovadas anteriormente. A Emenda Constitucional nº 19 já acabou com a estabilidade do servidor há 22 anos, a depender do seu desempenho. A Emenda Constitucional (EC) nº 41 já limitou os penduricalhos nas remunerações da elite do funcionalismo ao teto legal em 2003. Não foram regulamentadas. Para implantar a meritocracia, existe o PLP nº 248 de 28/11/1998, já aprovado no Senado e nas comissões da Câmara, aguardando votação em plenário. Para regulamentar a EC 41, existe o PL nº 6.726/2016, já aprovado no Senado e aguardando providência do presidente da Câmara.

O risco fiscal é, hoje, o mais importante componente de uma equação capaz de viabilizar um crescimento sustentável do país. E o componente mais sensível desse risco é o controle e a qualidade do gasto público. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontou a importância de manter sinalização clara do compromisso com o equilíbrio fiscal, o que também torna as reformas ainda mais importantes: o novo pacto federativo disciplinando a gestão fiscal nos três níveis de governo; a proposta de emenda constitucional extinguindo mais de 200 fundos de financiamento; a reforma administrativa que busque maior produtividade dos servidores e a contenção da segunda maior despesa da União e principal gasto dos estados e municípios. Adicionando a reforma tributária e as reformas microeconômicas que estimulem investimentos, poderemos criar as bases para um crescimento de longo prazo que nos permita escapar da armadilha da renda média.

O poder público precisa enfrentar um problema cultural, que é a dificuldade de lidar com limites. Na questão dos gastos, fica claro o esforço contínuo na busca de atalhos para contornar as regras estabelecidas. O que, como não poderia deixar de ser, nos torna escravos da nossa irresponsabilidade fiscal.

*Publicado no Correio Braziliense.

Respeitando limites

Existe um velho e sábio ditado: se souber gastar, não vai faltar. Vale para qualquer um de nós, para empresas e para governos. E “governos” não significa apenas Poder Executivo, mas também o Legislativo e o Judiciário, não só pelos gastos internos, mas também pelas decisões que tomam e que impactam os dispêndios em nível federal, estadual e municipal.

Um bom início de avaliação é entender que as corporações se apropriaram do Estado brasileiro. As públicas e as privadas. E a classe política, de maneira geral, tem tido pouca disposição para enfrentar poderosos lobbies que defendem bilhões em benefícios fiscais (inclusive a desoneração da folha dos famosos 17 setores, que prejudica alguma eventual desoneração para todos), universidades federais gratuitas para quem pode pagar, remunerações de servidores acima do teto constitucional e muitos outros privilégios.

A reforma administrativa é um passo importante na direção da qualidade do gasto. Tão ampla e irrestrita quanto a pressão da sociedade viabilizar. Se a população não conhecer melhor o problema e não se manifestar, talvez pouco se avançará. Uma primeira e importante etapa da reforma pode acontecer pela via das legislações ordinária e complementar, a partir de projetos em tramitação no Congresso, pela regulamentação de PECs já aprovadas anteriormente.

A Emenda Constitucional 19 já acabou com a estabilidade do servidor há 22 anos, a depender do seu desempenho. A Emenda Constitucional 41 já limitou os penduricalhos nas remunerações da elite do funcionalismo ao teto legal em 2003. Não foram regulamentadas. Para implantar a meritocracia, existe o PLP 248/1998, já aprovado no Senado e nas comissões da Câmara, aguardando votação em plenário. Para regulamentar a EC 41, existe o PL 6.726/16, já aprovado no Senado e aguardando providência do presidente da Câmara.

O risco fiscal é hoje o mais importante componente de uma equação capaz de viabilizar um crescimento sustentável do país. E o componente mais sensível desse risco é o controle e a qualidade do gasto público. Estudo do Ipea apontou a importância de manter sinalização clara do compromisso com o equilíbrio fiscal, o que também torna as reformas ainda mais importantes: o novo pacto federativo, disciplinando a gestão fiscal nos três níveis de governo; a proposta de emenda constitucional extinguindo mais de 200 fundos de financiamento; uma reforma administrativa que busque maior produtividade dos servidores e a contenção da segunda maior despesa da União e principal gasto dos estados e municípios.

Adicionando a reforma tributária e reformas microeconômicas que estimulem investimentos, poderemos criar as bases para um crescimento de longo prazo que nos permita escapar da armadilha da renda média.

O filósofo Francis Fukuyama, no livro Ordem e Decadência Política, de 2014, analisa a experiência de diversos países em termos de modelo de Estado. Escreveu que o Brasil criou um modelo piorado: gigante, caro e prestando serviços ruins à sociedade. Ou seja, temos um governo que, apesar de grande, é fraco, e que, apesar de cobrar muito, devolve pouco. Precisamos de uma versão forte e eficiente. O poder público precisa enfrentar um problema cultural, que é a dificuldade de lidar com limites. Na questão dos gastos fica claro o esforço contínuo na busca de atalhos para contornar as regras estabelecidas. O que, como não poderia deixar de ser, nos torna escravos da nossa irresponsabilidade fiscal.

Publicado no Jornal Gazeta do Povo – PR, versão online.